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Arquétipos de personagens        

Quando iniciei meus estudos em narrativa audiovisual prontamente constatei que, para alcançar certo êxito, precisaria dominar com plenitude a ciência desse ofício. Boas ideias não bastavam. Para transformar minha criatividade empírica em algo concreto e material era inevitável aprender a técnica. Criar intimidade com as ferramentas da escrita, e saber fazer o melhor uso delas, passou a ser minha principal missão desde então. Nessa trajetória de aprendizado, que garanto ser permanente, posso constatar com segurança que os recursos narrativos incorporados não só me proporcionam maior consciência autoral, como também contribuem significativamente na expansão de minha habilidade interpretativa e crítica audiovisual. Por esta razão, gostaria de aproveitar este espaço para jogar luz em um dos artifícios que mais me fascina e que, quando bem utilizado, penso contribuir consideravelmente nas narrativas: arquétipos de personagens.

Segundo o influente psiquiatra Carl Gustav Jung, “arquétipos são conjuntos de imagens primordiais originadas de uma repetição progressiva de uma mesma experiência durante muitas gerações, armazenadas no inconsciente coletivo”. Dito isso, não consigo deixar de associar essa afirmativa com o modo como nos identificamos com determinados personagens. Esse reconhecimento ocorre justamente por esses agentes narrativos abrigarem comportamentos universalmente conhecidos. A fácil assimilação lógica que o estereótipo proporciona me parece prover também um lugar de acolhimento intelectual, outra justificativa plausível para a empatia que sentimos pelos personagens que nos são familiares.

Sendo assim, o roteirista, ou aspirante, que deseje atrair a atenção do grande público é obrigatoriamente levado a compreender esse conhecimento, como bem defende o roteirista e teórico Christopher Vogler:  “O conceito de arquétipo é uma ferramenta indispensável para entender o objetivo e a função dos personagens em uma história. A compreensão do arquétipo que um personagem específico expressa pode ajudar a determinar se o personagem está fazendo a sua parte a contento da história” (VOGLER, 2015, p.62). Isto posto, utilizo então as definições deste mesmo autor para introduzir um resumo dos principais e mais utilizados arquétipos de personagem pelos roteiristas em narrativas clássicas:

  • Herói: Os olhos da história. Essencialmente, aquele que está em ação, em conflito. É quem mais cresce e amadurece no enredo. Dono de uma combinação única de impulsos contraditórios, exige ao mesmo tempo universalidade e originalidade.
  • Mentor: Aquele que ensina e treina o herói. Também pode exercer a função de provedor ou doador de algum presente. Atua motivando o herói no despertar de sua consciência.
  • Guardião do Limiar: Desafia e testa o herói ao longo de sua trajetória em momentos de passagem, podendo posteriormente se tornar amigo ou inimigo. Não raro, assume formas fantásticas diversas como guardiões de fronteiras, seguranças, sentinelas, leões de chácara etc.
  • Arauto: Aquele que traz notícias de mudança ao herói. Geralmente presente com mais frequência no primeiro ato, ajuda levar o herói à aventura. Motiva o protagonista, oferecendo uma missão, além de colocar a história em movimento.
  • Camaleão: Muito presente em narrativas noir e thrillers, é responsável por trazer dúvida e suspense à história. Suas ações confundem o espectador que não sabe se o personagem se trata de um amigo ou inimigo do herói. Sua aparência e comportamento mudam para atender as necessidades da história.
  • Sombra: O oponente a ser combatido, aquele que desafia o herói. São criadores de conflito que acabam também revelando o melhor do herói, pois forçam o protagonista a crescer para conseguir vencê-los. São antagonistas e vilões, mas também forças internas do próprio protagonista.
  • Aliado: Companheiro de viagem do herói. Pode atuar como amigo, parceiro de treino, consciência ou alívio cômico. Geralmente cumpre o papel de humanizar o protagonista, lutando ao lado, aconselhando, alertando e até contestando o herói.
  • Pícaro: Traz o alívio cômico à história. Pode estar a serviço de aliados do herói, a sombra ou ter objetivos próprios. Mesmo em histórias mais dramáticas e tristes, por vezes, é possível identificar a presença pontual deste arquétipo em algum personagem. 
Em "A jornada do escritor: estrutura mítica para escritores", Vogler defende a necessidade do domínio pleno da construção de arquétipos de personagem em boas narrativas.
Em “A jornada do escritor: estrutura mítica para escritores”, Vogler defende a necessidade do domínio pleno da construção de arquétipos de personagem em boas narrativas.

É importante ressaltar que, além dos exemplos citados acima, existem inúmeras outras variações de arquétipos mais específicos explorados pelas narrativas, como a figura do Caçador, da Guerreira, da Bruxa, do Rei, da Princesa, da Boa Mãe, do Amante, do Patrão Perverso, do Trabalhador Humilde, do Bom Policial, do Mau Policial, etc. Nesse sentido, o grande triunfo do roteirista de narrativa clássica me parece estar em sua habilidade em conservar a universalidade destes estereótipos introduzindo ao mesmo tempo elementos inovadores e pouco óbvios aos personagens. Afinal de contas, como explicado acima, o objetivo maior de um personagem é atrair identificação do público, gerando empatia e, como bem defende o famoso manual do roteirista Robert Mckee “(…) sentimos empatia por razões muito pessoais, se não egocêntricas” (MCKEE, 2006, p.141). Atribuir ao herói de uma história um comportamento tipicamente altruísta e simpático, por exemplo, não o tornará um personagem necessariamente empático. Ao contrário, a tendência será deixá-lo passivo e entediante. Novamente, como ensina McKee, “amabilidade não é garantia de envolvimento com o público; é apenas um aspecto de caracterização” (MCKEE, 2006, p.141).

Dito isso, finalizo minha reflexão expondo um exemplo prático do que me parece ser uma bem sucedida construção arquetipal, utilizando a personagem Jolene, interpretada pela atriz Moses Ingram, na amplamente divulgada minissérie “O Gambito da Rainha”, exibida pela Netflix, como objeto de análise. A narrativa da obra, como determina o modo clássico, gira em torno da protagonista Elizabeth Harmon, interpretada pela atriz Anya Taylor-Joy, que sofre de comportamento obsessivo. Ao longo do enredo, esta heroína irá, cada vez mais, dedicar-se ao universo do xadrez, comportando-se de maneira excessivamente obcecada e disciplinada em dominar as regras e princípios do jogo. Como contraponto, logo no primeiro episódio, quando Elizabeth é entregue a um orfanato após perder a mãe, a colega Jolane é introduzida. Esta personagem, por mais que exerça o papel narrativo de mentora, apresenta um comportamento nada óbvio e estereotipado do aliado bonzinho. Jolene é contraventora, justamente por ser mais experiente e já ter compreendido que as regras do jogo não foram estruturadas para favorecê-la. Contrária à disciplina imposta pelos dirigentes do orfanato, Jolane é desbocada e desobediente, mas é também quem, já no piloto, conduz Elizabeth ao equilíbrio, ensinando-a a usar os medicamentos alucinógenos oferecidos no orfanato com cautela e também a orientando nas particularidades de sua vida pessoal, como sua iniciação sexual. Narrativamente, Jolaine está claramente a serviço exclusivo da melhora do caráter obsessivo da protagonista, contudo, nem por isso, deixa de ser uma personagem extremamente única e, por consequência, empática, atendendo plenamente os conceitos ensinados por Vogler.

Em “O Gambito da Rainha”, como mentora, Jolene é quem proporciona maior equilíbrio ao comportamento obsessivo da protagonista Elizabeth Harmon.

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REFERÊNCIAS:

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estrutura mítica para escritores. São Paulo: Aleph, 2015.

MCKEE, Robert. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Curitiba: Arte & Letra, 2006.

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