Final aberto é um recurso que sempre causa certo estranhamento no espectador menos treinado. Talvez o espectador mais maduro enxergue como uma boa provocação ou como uma proposta de reflexão, mas se você é acostumado a assistir filmes apenas de narrativa clássica, com caráter teleológico (ou seja, com uma finalidade clara), você inevitavelmente vai se incomodar pelo menos um pouco com o final aberto. Por que isso?
Nós seres humanos somos criados, especialmente aqui no ocidente, sob uma cultura fixa e teleológica. A gente gosta da fixidez, no sentido de que tudo precisa ser preto no branco, tudo precisa ter um mesmo significado imutável. Na escola, a gente cresce aprendendo o que é certo e o que é errado, a gente é ensinado de que existe uma única verdade sobre tudo e todos. O aspecto teleológico diz respeito ao fato de buscarmos finalidade: tudo o que vemos tem que visar uma resolução de sentido, uma solução de um conflito. Em suma, a maioria de nós aprende que tudo tem uma explicação lógica, um único sentido verdadeiro e imanente e que tudo existe por um motivo.
João Maria Mendes, um dos maiores autores vivos sobre narrativa audiovisual, em seu livro Por que tantas histórias? nos afirma o seguinte: “A criança (…) precisa de modelos monocromáticos em que se associam apenas perfis positivos ou negativos, porque tem dificuldade em entender a duplicidade contraditória dos valores da vida adulta. Mas a vida adulta gosta de se rever em personagens eticamente discutíveis e policromáticos, que a representam com mais complacência e compreensão, e com as quais é possível estabelecer regras menos rígidas, no antigo jogo da identificação e da projeção.”. Ou seja, a gente muitas vezes carrega isso da infância, e, à medida em que ficamos adultos, notamos que nem sempre tudo é preto no branco.
Quando a gente traz essa teoria para o âmbito narrativo, lembramos que a Narrativa Clássica é aquela que explora os campos da fixidez, da logicidade. Por exemplo, um final aberto é completamente impensável numa narrativa clássica. Entretanto, o tipo da narrativa que mais fala sobre essas rupturas é a moderna. Inclusive, na turma nova do meu Minicurso, eu vou abordar mais sobre Narrativa Moderna. Clique aqui para colocar seu nome na lista de espera!
Quem é meu aluno já sabe que a narrativa moderna veio para desconstruir alguns conceitos da narrativa clássica, que contempla esses aspectos da fixidez, da logicidade. Na narrativa moderna, a gente fala do que é ilógico. Ela veio justamente para romper com o que esses outros aspectos da narrativa clássica. Ela é menos chapada, mais complexa.
E o final aberto é uma das melhores maneiras da narrativa moderna expressar essa vontade de desconstrução dela. Ela muitas vezes quer muito mais provocar uma reflexão do espectador do que de fato passar uma mensagem única. E em geral esse tipo de filme, moderno, vai expondo várias e várias situações para gerar uma reflexão. O final aberto é o filme nos dizendo que não chegará num postulado sobre aquela reflexão; isto fica para o espectador. E ele também expõe situações paradoxais, na narrativa moderna ninguém é uma coisa só; nós temos características contraditórias convivendo numa mesma situação ou pessoa.
E o final aberto tá ali pra que a gente saia exatamente com essa reflexão. Se a gente tem um final redondo, lógico, fixo e unitário, acabou com a reflexão, o filme te deu a mensagem. E a última coisa que um filme moderno vai te entregar é a moral da história. Um dos teóricos mais brilhantes sobre filmes moderno, o András Kovács (Screening Modernism), traz uma definição bem direta e útil para nós:
“O encerramento da narrativa é o ponto em que a ordem é recuperada ao universo do enredo. Pode ser uma nova ordem, mas geralmente é uma ordem original que sofreu alterações pelo incidente incitante, e que vai ser recuperada. Uma das particularidades mais conhecidas dos modernistas e empregada em vários filmes modernos e suspender o encerramento do filme. Esse mecanismo pode ser encontrado em vários gêneros, formas e estilos narrativos”.
Nós estranhamos o final aberto porque estamos habituados com a teleologicidade e com a moral da história que a aconchegante narrativa clássica nos passa. Mas devemos enxergar o final aberto não como um defeito de que o filme não concluiu sua narrativa, mas sim como uma provocação do mesmo, para nos incitar uma reflexão.